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Scania e Outros v. Comissão: o procedimento híbrido e a garantia dos direitos de defesa das visadas

Portugal - 
Miguel Cortes Martins, associado sénior do Departamento de Direito Europeu e da Concorrência de Garrigues em Portugal

Que consequências tem um procedimento de transação em que todas as empresas chegam a acordo com a autoridade que conduz a fase de inquérito exceto uma? Poderá esta ser prejudicada por não ter chegado a acordo? Como se observa o princípio da presunção de inocência tendo em conta que os outros participantes na infração já admitiram a prática dos factos? Neste artigo, identificamos os riscos e desvantagens criados pelo denominado procedimento híbrido e veremos que dificilmente estes poderão ser totalmente mitigados.

No dia 2 de fevereiro de 2022, o Tribunal Geral da União Europeia, confirmou a coima de 880,52 milhões de euros aplicada pela Comissão Europeia à empresa sueca Scania por participação num cartel que envolvia fabricantes de camiões. O cartel em questão visava a fixação de preços a distribuidores e o seu progressivo aumento, a coordenação das suas datas de alteração, a fixação de descontos a praticar pelos distribuidores junto dos consumidores e a data de introdução de tecnologias de emissões reduzidas em cada uma das empresas envolvidas.

No âmbito desta Decisão, destacamos algumas questões levantadas pelo chamado procedimento híbrido que foi adotado pela Comissão para investigar esta prática. Referimo-nos, em especial, à garantia de imparcialidade que impende sobre as autoridades de concorrência e ao princípio da presunção de inocência que enfrenta importantes desafios nesta sede.

O procedimento híbrido consiste na adoção, por parte da Comissão Europeia, de duas decisões no âmbito do mesmo processo, através de dois procedimentos distintos: o procedimento de transação e o procedimento ordinário de investigação de infrações ao direito da concorrência.

No procedimento de transação as empresas visadas no processo por infração às normas do direito da concorrência negoceiam com a Comissão a sua admissão quanto à sua participação na infração, assim como os factos e a sua qualificação jurídica.  Se for alcançado acordo entre as partes, o montante da coima aplicada pela Comissão é reduzido em 10 %.

Importa realçar que o procedimento de transação apenas envolve as partes que nele desejam participar, ficando as restantes sujeitas aos trâmites do procedimento ordinário. Esta distinção é relevante, pois as decisões em sede de procedimento de transação são, regra geral, mais expeditas, pelo que podem ocorrer antes da adoção de decisão no âmbito do procedimento ordinário, como aconteceu neste caso.

Com efeito, a Scania decidiu retirar-se do procedimento de transação que corria para investigar o alegado cartel de que a mesma faria parte, tendo a transação continuado relativamente às restantes visadas pela investigação da Comissão. Em virtude deste desenvolvimento, a Scania alegou que a Comissão violou o princípio da boa administração, pelo facto de ter adotado em primeiro lugar uma decisão no âmbito do procedimento de transação e de ter deixado a decisão em sede de procedimento ordinário para um momento posterior. No entendimento da Scania, esta atuação pôs em causa a posição de imparcialidade da Comissão, já que consolidou a sua convicção quanto aos factos e à sua qualificação antes de os mesmos serem apreciados em sede de procedimento ordinário.

Neste contexto, alegou também a Scania que decorre do facto de a Comissão ter entendido em sede de procedimento de transação que os factos e as condutas em causa consubstanciavam uma violação ao direito da concorrência que esta violou o princípio da presunção de inocência, dado que a Scania não tinha ainda tido oportunidade de exercer os seus direitos de defesa.

Quanto a este aspeto, o Tribunal considerou que a decisão da Comissão de seguir o procedimento de transação não implica, por si só, uma violação do princípio da presunção da inocência, dos direitos de defesa dos visados ou do dever da imparcialidade da Comissão. Com efeito, de acordo com a jurisprudência europeia, a Comissão pode adotar uma decisão em sede de procedimento de transação e, seguidamente, adotar uma decisão no termo do procedimento ordinário, mesmo que algumas partes não optem pelo procedimento de transação. Não obstante, nestes casos é necessário cumprir certos requisitos para que a adoção do processo híbrido possa ser efetuada sem que possa pôr em causa os direitos das visadas.

No caso Pometon, o Tribunal de Justiça da União Europeia confirmou pela primeira vez a validade da adoção do procedimento de transação nos casos em que este não inclua todos os participantes na infração. Nos termos desta decisão, e no que diz respeito aos factos relativos às partes que não estão envolvidas no procedimento de transação (“partes não-negociantes”), a Comissão terá de ter precauções adicionais para evitar uma decisão prematura em relação à participação das partes na infração e para não divulgar informação relativa às partes não-negociantes, para além da considerada necessária para a qualificação da responsabilidade dos destinatários dessa decisão.

São exemplo dessas precauções a elaboração e declaração das razões que levam à decisão do procedimento de transação, a garantia de que as referências à empresa que saiu do procedimento de transação sejam apenas feitas quando estritamente necessário, não devendo a Comissão mencionar o nome desta. A este respeito, cumpre referir que o Tribunal teve a preocupação em observar estas precauções no âmbito desta Decisão.

Relativamente à alegada violação do princípio da presunção de inocência, o Tribunal referiu que esta requer a existência de prova formal e concreta, ou, pelo menos, alguma alusão em relação à responsabilidade das partes não-negociantes. Assim, a classificação legal dos factos e apreciação da mesma prova apenas por referência às partes negociantes não viola este princípio, tendo em conta que a parte não-negociante terá a oportunidade de contestar e ser ouvida em sede própria.

Ainda a este respeito, refere o Tribunal que a Comissão não está vinculada aos factos e às qualificações legais adotadas no procedimento de transação, mesmo em relação às partes que fizeram parte desse procedimento. Assim, de acordo com o princípio da presunção da inocência e o dever de imparcialidade, a Comissão tem de fazer a análise dos factos e qualificar a conduta das visadas como se estivesse a analisar informação nova (princípio da tabula rasa).

Comentário

A questão de saber se a imparcialidade de uma autoridade de concorrência resulta afetada pela possibilidade que tem de adotar decisões no âmbito do mesmo processo, mas através de procedimentos distintos não tem resposta fácil. A mesma pergunta pode ser colocada quanto à integralidade e garantia dos direitos de defesa e da presunção de inocência de empresas visadas nesta sede que, ainda que não lhes sejam negados, são seguramente postos à prova nestes expedientes.

Com efeito, no caso sob análise, os factos e a prova analisados pela Comissão nos dois procedimentos eram exatamente os mesmos. Tendo a Comissão chegado a uma decisão sobre a qualificação legal dos factos em sede de procedimento de transação, enquadrando a prática como um acordo horizontal, parece difícil conceber que chegaria a conclusão diferente no âmbito do procedimento ordinário.

A Scania não negou deter, em teoria, as garantias e oportunidades consagradas pela lei para exercer os seus direitos, mas referiu que as mesmas eram inúteis, dado que a Comissão não estava numa posição imparcial para, simultaneamente, investigar, julgar e decidir, especialmente quando está em causa a adoção de dois procedimentos distintos para investigar a mesma prática.

A conciliação destes dois procedimentos é, pois, extremamente complexa, exigindo elevados cuidados e discrição por parte de qualquer autoridade da concorrência, dado que existem incentivos diferentes em cada um deles. Com efeito, o procedimento de transação assenta na celeridade e na discrição, podendo privilegiar-se a conclusão de um acordo em detrimento de uma investigação que apure de forma detalhada e exata todos os factos relevantes e o grau de participação de cada um dos visados, como sucederia numa decisão adotada no âmbito do procedimento ordinário.

Apesar das garantias existentes, uma empresa visada numa investigação de um cartel em que já tenha havido transação entre a autoridade de concorrência e outras participantes no referido acordo, estará numa posição mais fragilizada do que estaria se o procedimento utilizado na investigação fosse o mesmo para todos os envolvidos. Por muitos recursos e equipas que as autoridades tenham ao seu dispor para garantir uma efetiva compartimentação de informação no decurso do processo, parece difícil negar que uma empresa que tenha de apresentar a sua defesa a uma autoridade que já investigou, negociou e acordou os termos e qualificação jurídica dos factos e da participação de outras envolvidas na mesma prática não enfrenta um plano algo inclinado.