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COVID-19 e Preços de Transferência: A crise sanitária pode afetar a análise, a avaliação e a documentação das operações vinculadas

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Comentário Fiscal Portugal

A atual emergência sanitária internacional produz um enorme impacto em todas as áreas, incluindo a fiscalidade, e os seus efeitos vão perdurar. Os preços de transferência não são imunes a esta situação e as consequências estão patentes em vários vetores como o financiamento intragrupo, o modelo de análise, avaliação e documentação das transações entre partes relacionadas, ou os acordos prévios de preços de transferência (“APPT”).

Por esta razão, a OCDE já anunciou a preparação de Guidelines sobre os preços de transferência no contexto desta crise (que deverão estar disponíveis no final deste ano), para que possam ser utilizadas pelos grupos multinacionais e pelas administrações fiscais como referência para os temas mais complexos ou problemáticos.

Segue-se uma abordagem às questões consideradas mais relevantes neste momento, a qual não dispensa a análise personalizada ao nível de cada empresa e grupo multinacional.  

1. Necessidade de liquidez e operações financeiras

A situação económica decorrente da crise pandémica irá gerar, em maior ou menor grau, tensões de liquidez decorrentes da redução dos rendimentos e/ou do atraso na cobrança de créditos, o que poderá determinar decisões no seio dos grupos de empresas com impacto nas transações vinculadas ou na sua avaliação.

Entre outros, são exemplos do que precede: (i) necessidades reforçadas de financiamento; (ii) revisão das condições dos contratos de financiamento e dos sistemas de cash pooling; (iii) aumento no recurso a contratos de factoring; (iv) exigência de garantias ou colaterais, implícitas ou explícitas, para acesso a financiamento; ou (v) atraso no pagamento de compras ou de outras transações intragrupo (i.e. serviços de gestão (management fees), royalties, etc.).

Esta situação implicará o correspondente agravamento dos encargos financeiros, que deve ser avaliado em condições de plena concorrência ou, eventualmente, ponderado o cancelamento de alguns destes pagamentos, se possível, com base em cláusulas que possam ter sido previstas nos contratos celebrados entre as partes.

Para além disso, o número e o montante de novas transações (ou alterações nas existentes) será determinado pela intensidade com que a crise impacte as filiais (dependendo da sua localização), ou alguns negócios por oposição a outros, o que pode significar que as necessidades de caixa nem sempre serão simétricas no seio dos grupos.

A análise de comparabilidade a efetuar como passo prévio para determinar as taxas de juro destas operações deverá ter em consideração aspetos como a nova solvabilidade dos mutuários, a sua capacidade futura de honrar compromissos e as várias alternativas disponíveis, tudo isto à luz das novas Guidelines publicadas em fevereiro de 2020 pela OCDE em matéria de transações financeiras.

Estas mesmas pressões de liquidez podem também ter impacto no financiamento externo do grupo, tais como o incumprimento de covenants, a deterioração da caracterização creditícia (e, portanto, do acesso a financiamento de terceiros), ou a necessidade de reforço de garantias para obter financiamento, o que pode estimular o financiamento intragrupo.

É igualmente importante analisar o impacto que as políticas adotadas pelos bancos centrais ou pelas instituições financeiras e de crédito podem ter na determinação da avaliação de mercado das transações financeiras (tanto nas novas operações como nos refinanciamentos das existentes, como ocorreu na crise anterior), bem como o efeito das diferentes regulamentações fiscais (limitações do nível de endividamento, dedutibilidade de juros ou retenções na fonte).

Finalmente, determinados grupos multinacionais receberão assistência financeira dos respetivos Estados, o que terá consequências financeiras no seio dos respetivos grupos que terão de ser cuidadosamente analisadas (não só nas taxas aplicadas, mas, mais importante ainda, na correta definição da tipologia e características da transação).

2. Operações intragrupo: ajustamentos às políticas de preços de transferência

A cadeia de valor e as operações habituais das diferentes entidades podem ser afetadas de muitas formas, já que em quase nenhum caso foram concebidas para prever os efeitos de uma crise como a presente.

Assim, enquanto nalgumas fases da crise pode assistir-se à centralização de funções (principalmente para otimizar custos), noutras a descentralização pode apresentar melhorias na capacidade de reação e adaptação a segmentos de mercados específicos. Em alguns canais comerciais (e.g. online) ou divisões de negócio, pode ocorrer um melhor desempenho empresarial do que noutros.

Para tal, será necessário rever a contribuição das várias entidades de um grupo multinacional para a criação de valor (e para o controlo dos riscos) e, por conseguinte, poderá ser necessário ajustar a adequação das políticas de preços de transferência, que terão de ser adaptadas ao novo perfil funcional e de risco de cada entidade e de cada grupo.    

Poderão também surgir situações em que seja necessário decidir se um determinado modelo de repartição de lucros (profit split) pode ser aplicado, com ou sem ajustamentos adicionais, para a alocação das perdas globalmente acumuladas às várias entidades de um grupo.

Deve ser dada especial atenção ao efeito que as medidas temporárias decorrentes da crise podem ter na análise das transações vinculadas: interrupções/atrasos nos fornecimentos, lay-offs e cessações temporárias de atividade, incapacidade de absorção de custos fixos com atividades em declínio, ou quedas súbitas nas vendas e o seu impacto nos resultados e na gestão de stocks.

Terão, igualmente, de ser tomadas em consideração as eventuais "exceções" que seja necessário adotar em relação às normais políticas de preços de transferência, que terão de ser justificadas com base no comportamento de terceiros como consequência da crise.

A nível operacional, alguns exemplos destas podem ser: (i) a transferência de bens ou serviços a preço de custo (ou mesmo com prejuízo) para reduzir as existências no vendedor e/ou as perdas no comprador; (ii) os efeitos que a paragem temporária da produção e da atividade comercial pode ter nos preços aplicados ou nas margens obtidas; (iii) a suspensão temporária do pagamento de determinados serviços recorrentes, tais como os serviços de gestão (management fees) ou licenciamento de ativos intangíveis (royalties); (iv) possíveis alterações dos critérios contabilísticos e/ou de imputação de gastos extraordinários; (v) o efeito das ajudas públicas no cálculo dos resultados; (vi) a compensação por lucros cessantes, etc.

Por outro lado, não pode ser excluído o surgimento de sinergias ou novos tipos de operações entre entidades do mesmo grupo, principalmente derivadas da prestação de serviços ou da subcontratação.

Nos casos mais extremos, a crise atual pode mesmo conduzir à mudança radical do modelo operacional e comercial de um grupo multinacional (eventualmente através de um movimento irreversível para a digitalização), o que implicará a reconfiguração da sua cadeia de valor, bem como a reestruturação das operações vinculadas, que terão de ser identificadas e devidamente analisadas em sede de preços de transferência.

Por último, embora seja difícil avaliar neste momento a dimensão desta questão, será igualmente necessário acompanhar o impacto da crise nos casos (que são muitos) em que o cumprimento do princípio da plena concorrência é mensurado com base no rendimento anual obtido em relação a um determinado indicador (de gastos ou de vendas), bem como quaisquer ajustamentos que possam ser necessários a este respeito e o momento em que tais ajustamentos devem ser efetuados (para o efeito, devem ser revistas as previsões de receitas e gastos a curto prazo).

O exemplo mais representativo desta questão são, provavelmente, as entidades que operam sob esquemas de risco e remuneração limitados (fabricantes por encomenda, distribuidores de baixo risco, prestadores de serviços de risco limitado, etc.), que são tradicionalmente remunerados com margens reduzidas (sobre os gastos ou sobre as vendas) em função do baixo risco que assumem no iter das atividades operacionais.

Num cenário em que estas entidades terão de enfrentar elevados e estruturais custos fixos ou perdas de inventário, a questão que se coloca é até que ponto poderão ver a sua remuneração reduzida ou mesmo extinta, tendo igualmente em conta as perdas obtidas pelo grupo a que pertencem globalmente (e, em particular, as empresas que operam como o principal da estrutura).

3. Preparação da documentação obrigatória: avaliação das operações com partes relacionadas

Por mais óbvio que seja o comentário, há que ter em conta o desfasamento temporal entre a preparação da documentação de preços de transferência (a realizar ao longo do próximo ano na maioria das jurisdições), e a sua revisão em tempo posterior pelas administrações fiscais e com acesso a mais ampla informação.

Por conseguinte, é essencial que aquela documentação reflita claramente o processo de decisão e as razões que determinaram as políticas de preços de transferência adotadas em resultado da crise a todos os níveis (na cadeia de valor e/ou de aprovisionamento, funções, riscos e ativos utilizados, caracterização funcional das partes, preços ou margens, observações comparáveis utilizadas na justificação das condições de mercado, etc.).

Além disso, deve ser dada especial atenção às informações contidas no masterfile, na declaração financeira e fiscal por país (Country by Country Report) e na Informação Empresarial Simplificada (IES), assegurando que quaisquer alterações sejam devidamente refletidas e consistentes com o conteúdo da documentação de cada entidade. Agora, mais do que nunca, será necessária uma abordagem conjunta e concertada da documentação relativa a preços de transferência.

Por outro lado, será necessário analisar qual o nível de informação disponível para demonstrar a adequação do princípio de plena concorrência aos termos e condições estabelecidos entre partes relacionadas (recorde-se que as bases de dados normalmente utilizadas apresentam um desfasamento temporal de aproximadamente um ano).

A este respeito, como aconteceu na crise anterior, é de esperar uma grande instabilidade devido à utilidade limitada (em termos de reflexão das atuais condições de mercado) das análises económicas comparativas (benchmarks) realizadas ou atualizadas com dados de anos anteriores, em circunstâncias económicas e empresariais radicalmente diferentes.

Neste contexto, será essencial analisar as medidas que devem ser tomadas para atenuar, na medida possível, estas deficiências em termos de comparabilidade.

Tais medidas podem, por exemplo, incluir a reavaliação da comparabilidade de certas empresas consideradas em anos anteriores, o período de tempo utilizado, a consideração de entidades que registam prejuízos, a discriminação por sector económico ou por país em função do seu grau de exposição à crise, ou a realização de certos ajustamentos (por exemplo, ao nível do fundo de maneio ou das existências, ou aos intervalos inicialmente obtidos à luz da imparidade sofrida na demonstração de resultados da empresa analisada em 2020).

Sem prejuízo do que precede, deve ter-se igualmente em conta que este tipo de medidas só deve ser realizado quando tal for suficientemente razoável e contribuir para melhorar a fiabilidade da amostra.

4. Acordos Prévios de Preços de Transferência (APPT)

Nos casos em que as políticas de preços de transferência estão suportadas por APPT com uma ou mais administrações fiscais, será necessário efetuar um acompanhamento individualizado de cada um deles e, em especial, das suas hipóteses críticas (quantitativas ou qualitativas).

Assim, em função do impacto da crise nos vários acordos, pode ser adequado abordar as administrações fiscais competentes para, pelo menos temporariamente, avaliar conjuntamente a (potencial) necessidade de incluir variações e/ou adaptações, ou mesmo para avaliar a oportunidade de solicitar a sua não aplicação.

Por outro lado, qualquer circunstância que afete o cumprimento rigoroso dos seus termos deve ser adequadamente refletida nos relatórios de acompanhamento anualmente preparados e enviados para a Direção de Serviços de Inspeção Tributária, no prazo de entrega da declaração periódica de rendimentos.

No que respeita aos acordos atualmente em negociação, o impacto da situação atual deve ser considerado na sua justa medida.

Em qualquer caso, e dado o nível de incerteza que nos acompanhará durante um longo período, é especialmente aconselhável procurar este tipo de acordos com as autoridades fiscais para as operações que, devido à sua relevância quantitativa ou complexidade técnica, são difíceis de avaliar do ponto de vista dos preços de transferência.

Para além do acima exposto, devem ser também tomadas em consideração as circunstâncias atuais na futura negociação de procedimentos amigáveis na resolução de litígios (Mutual Agreement Procedure - MAP) que afetem este (e/ou os próximos) período(s) de tributação.

5. Outros aspetos de interesse

5.1 Colaboradores

Embora o Secretariado da OCDE já tenha esclarecido, em nota publicada em 3 de abril de 2020 (aceder), que o carácter excecional da mudança temporária de residência dos trabalhadores em consequência desta crise não deve conduzir (em princípio e desde que exista uma convenção para evitar a dupla tributação) à existência de novos estabelecimentos estáveis, as medidas de confinamento e de trabalho remoto poderão conduzir a situações em que algumas funções-chave sejam "transferidas de jurisdição".

Isto pode também aumentar a relevância de determinado pessoal em detrimento de outro na análise da cadeia de valor, afetar a caracterização funcional de determinadas entidades ou impactar na forma como determinados serviços são prestados (que anteriormente eram prestados por pessoal expatriado), bem como nos incentivos com estes relacionados.

5.2 Condições contratuais

Nas atuais circunstâncias, é essencial proceder à revisão aprofundada das cláusulas contratuais, tanto nas relações com terceiros como com partes relacionadas, a fim de avaliar as possibilidades existentes para justificar alterações nas operações e a sua adaptação ao que terceiros independentes acordariam em condições semelhantes (i.e., volumes, preços, condições de entrega, condições de pagamento, etc.).

Para o efeito, devem ser analisadas as condições contratualmente estabelecidas, os acordos que terceiros celebraram em situações comparáveis e as disposições legislativas da jurisdição a que o acordo está sujeito: cláusulas de ajustamento, força maior, rebus sic stantibus, circunstâncias imprevistas, alterações materiais adversas ou critérios de razoabilidade e boa-fé.

No que respeita à introdução de novas cláusulas contratuais, é possível considerar que certas condições devem ser adaptadas a situações excecionais como a atual, introduzindo variáveis diferentes (i.e. PIB, inflação, vendas, etc.) que permitam adaptar as condições contratuais às bruscas mudanças do mercado.

6. Recomendações gerais

Para concluir, e numa perspetiva eminentemente prática, resumem-se seguidamente alguns aspetos gerais relativos aos preços de transferência, mencionados ao longo do presente documento, que devem ser acompanhados de perto durante os próximos meses, a fim de se adaptarem corretamente às alterações que a situação atual possa exigir, prevenindo questionamentos futuros sobre os ajustamentos efetuados neste momento.

Em primeiro lugar, é aconselhado monitorizar as modificações que ocorrem no desenvolvimento das atividades empresariais, nas cadeias de valor e de aprovisionamento e nas necessidades operacionais e financeiras, bem como o impacto no desenvolvimento de operações vinculadas no âmbito dos grupos multinacionais.

Por conseguinte, deve ser prestada atenção, entre outros aspetos, às alterações do perfil funcional e de risco tanto das partes envolvidas nas operações como dos possíveis comparáveis, ao seu impacto nas análises económicas necessárias para avaliar essas operações, às cláusulas contratuais que contemplam situações de eventual incumprimento e às alternativas realisticamente à disposição das partes.

Não deve descurar-se que as inspeções fiscais que considerem todas estas circunstâncias em anos futuros terão lugar (provável e desejavelmente) num contexto de maior serenidade e com acesso a informação mais atual (como aconteceu com a crise anterior).

Neste contexto, as autoridades fiscais verificarão o impacto económico desta crise na base tributária dos sujeitos passivos e tentarão certamente estabelecer uma relação entre o resultado das políticas de preços de transferência antes e depois da reestruturação, o que suscitará certamente controvérsia em sede de preços de transferência.

Por este motivo, é da maior importância desenvolver e documentar, neste momento, da forma mais pormenorizada possível, todos os argumentos empresariais e económicos que possam justificar e permitir apoiar no futuro a razoabilidade das alterações introduzidas na política de preços de transferência e o seu impacto nos diferentes modelos de remuneração.

Por último, e nos casos mais relevantes (quantitativos, operacionais ou fruto da sua complexidade), é fulcral considerar a conveniência de validar ou contrastar as alterações introduzidas através da negociação de APPT com as administrações fiscais, a fim de obter o maior grau de segurança e certeza jurídicas que for viável.