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Regulamento DLT: o regime-piloto para as infraestruturas de mercado baseadas na tecnologia de registo distribuído em Portugal

Portugal - 
Marta Graça Rodrigues e Tomás Gomes da Silva, sócia e associado, respetivamente, do Departamento Comercial e Fusões e Aquisições e Mercado de Valores Mobiliários, Bancário e Financeiro da Garrigues.

Neste artigo realizamos uma breve análise do recém-aprovado e publicado Decreto-Lei n.º 66/2023, que executa o Regulamento DLT, e das suas consequências para os mercados financeiros portugueses e europeus. O objetivo é promover a inovação sem comprometer a estabilidade do mercado e a proteção dos investidores.

O Decreto-Lei n.º 66/2023 foi aprovado no dia 8 de agosto de 2023 e procede à execução, no ordenamento jurídico português, do Regulamento (UE) 2022/858 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de maio de 2022, relativo a um regime-piloto para as infraestruturas de mercado baseadas na tecnologia de registo distribuído (Regulamento DLT). Aquele diploma tem como objetivo integrar a tecnologia de registo distribuído nos mercados financeiros portugueses e oferece uma estrutura jurídica abrangente que inclui os vários participantes no mercado.

A tecnologia de registo distribuído (DLT) é uma tecnologia de registo descentralizado de informação. Dentro deste sistema, a informação é armazenada com recurso a uma rede de bases de dados, detidas por várias entidades, sem que exista um administrador central. Um dos tipos de DLT existentes, e provavelmente o mais conhecido, é a blockchain. Esta tecnologia permite armazenar informação em blocos, ligados entre si, por ordem cronológica. A blockchain inclui uma componente de criptografia e fórmulas matemáticas que garantem que a informação guardada não pode ser adulterada, e está habitualmente na génese dos criptoativos. 

A nova legislação portuguesa engloba um vasto leque de atividades para os operadores de infraestruturas de mercado baseadas na DLT, alinhando-se com o Regulamento DLT, que estabelece o padrão para todos os Estados-Membros da União Europeia. De acordo com o diploma, estes estão habilitados a:

  • Prestar os serviços de registo e depósito de instrumentos financeiros DLT.
  • Gerir sistemas de negociação multilateral.
  • Gerir sistemas de liquidação de valores mobiliários.
  • Receber, transmitir e executar ordens por conta de outrem.
  • Gerir carteiras por conta de outrem.
  • Negociar por conta própria.

Num movimento para agilizar a integração da DLT nos sistemas financeiros, o Decreto-Lei n.º 66/2023 flexibiliza alguns requisitos de registo para instrumentos financeiros negociados em sistemas de negociação multilateral baseados em DLT. É permitido, nomeadamente, que os operadores de infraestruturas de mercado baseadas na DLT atuem como único intermediário financeiro para efeitos de registo caso optem pelo sistema de registo previsto na alínea b) do artigo 61.º do Código dos Valores Mobiliários, isto é, através de conta aberta junto de um único intermediário financeiro indicado pelo emitente. Isto significa, por exemplo, que as ações representativas do capital social de uma sociedade portuguesa sob a forma escritural passam a poder estar registadas nestes operadores. 

O diploma também designa a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) como autoridade competente para conceder e revogar autorizações específicas para operar um sistema de negociação multilateral ou sistema de liquidação de valores mobiliários baseados na DLT, alinhando-os com os termos do Regulamento DLT.

Descodificar o Regulamento DLT

A União Europeia deu início a uma nova era de inovação financeira com aprovação do Regulamento DLT em maio de 2022. Este marco legislativo assinalou uma transição fundamental dos sistemas financeiros tradicionais para estruturas descentralizadas baseadas em DLT, como a blockchain, que estão na base dos criptoativos.

Historicamente, os diplomas legislativos da UE em matéria de serviços financeiros não foram elaborados tendo em conta o uso de DLT, uma vez que esta é uma invenção recente. O panorama jurídico existente colocava obstáculos aos criptoativos considerados como instrumentos financeiros, restringindo a sua emissão, negociação e liquidação.

Na sua essência, o Regulamento DLT tem como objetivo criar um terreno fértil para o desenvolvimento de infraestruturas de mercado baseadas em DLT. Temporariamente, estas infraestruturas estarão isentas de certas regras aplicáveis aos instrumentos financeiros em geral que, de outra forma, poderiam sufocar a inovação na negociação e liquidação de instrumentos financeiros tokenizados.

Adicionalmente, o Regulamento DLT procura capacitar a Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados (ESMA) e as autoridades competentes locais para recolherem informações sobre as oportunidades e ameaças específicas colocadas pelos criptoativos e pelas suas tecnologias de base. A iniciativa procura encontrar um equilíbrio entre a promoção do avanço tecnológico e a garantia da proteção dos investidores, da integridade do mercado e da estabilidade financeira.

O Regulamento DLT não é um espaço exclusivo para as entidades já autorizadas. Abre as portas aos recém-chegados ao sector financeiro. As sociedades financeiras ainda não autorizadas ao abrigo dos regulamentos da UE existentes, como o Regulamento (UE) n.º 909/2014 (RCSD) ou a Diretiva 2014/65/EU (DMIF II), podem solicitar autorização para operar infraestruturas de mercado baseadas em DLT ao abrigo do novo regime. É crucial evidenciar que a sua autorização será específica para infraestruturas desse tipo, sujeitas a revogação após a caducidade do prazo, a menos que sejam renovadas ao abrigo da legislação em vigor.

Portanto, quem é que pode beneficiar desta alteração legislativa? Essencialmente, abre-se uma nova fronteira para empresas interessadas em tokenizar os instrumentos financeiros descritos no Regulamento DLT, que se reconduzem aos seguintes:

  • Ações cujo emitente tenha uma capitalização bolsista ou uma capitalização bolsista provisória inferior a 500 milhões de EUR;
  • Obrigações, outras formas de dívida titularizada, nomeadamente certificados de depósito relativos a esses títulos, ou instrumentos do mercado monetário, com um volume de emissão inferior a mil milhões de EUR, exceto aqueles que contenham um derivado ou que incorporem uma estrutura que torne difícil ao cliente compreender o risco envolvido; ou
  • Unidades de participação em organismos de investimento coletivo abrangidos pelo artigo 25.º, n.º 4, alínea a), subalínea iv), da DMIF II, cujo valor de mercado dos ativos sob gestão seja inferior a 500 milhões de EUR.

As empresas de investimento previamente autorizadas de acordo com a legislação existente da UE são as principais candidatas a ocupar o novo espaço aberto por esta oportunidade, mas há também lugar para o surgimento de novas empresas especializadas no desenvolvimento de mercados e produtos baseados em DLT.

Limitado a ações, obrigações e unidades de participações em organismos de investimento coletivo, o Regulamento DLT impõe limites máximos de valor de mercado para atenuar os riscos financeiros sistémicos. Três anos após a sua implementação, a ESMA avaliará a eficácia do programa, abrindo potencialmente o caminho para a sua extensão ou a inclusão de outros tipos de instrumentos financeiros.

As entidades autorizadas podem obter isenções de determinados requisitos da DMIF II e do RCSD. No entanto, não se trata de isenções gerais a estes regimes. São cuidadosamente elaboradas para permitir a inovação, assegurando simultaneamente um ambiente regulamentar sólido, sendo exigido que esses operadores de mercado cumpram com quaisquer medidas compensatórias que a autoridade competente considere adequadas para alcançar os objetivos das disposições que tenham sido objeto do pedido de isenção ou para assegurar a proteção dos investidores, a integridade do mercado ou a estabilidade financeira.

Relação entre o Regulamento DLT e o Decreto-Lei n.º 66/2023

O Regulamento DLT é um ato legislativo vinculativo emanado das instituições legislativas da UE e aplica-se diretamente na ordem jurídica portuguesa, sem necessidade de transposição. Contudo, mostrara-se necessário adaptar a legislação portuguesa às novidades por ele trazidas e atualizá-la de acordo com as especificidades da DLT. O Decreto-Lei n.º 66/2023 veio assim complementar os objetivos e exceções previstas no Regulamento DLT. Em conjunto, estes dois diplomas visam promover a inovação, a integridade dos mercados e a proteção dos investidores.

A lei portuguesa facilita uma implementação rápida do Regulamento DLT, fornecendo um quadro específico para o país que clarifica as funções e responsabilidades das várias partes interessadas. Ao fazê-lo, promove uma adoção mais rápida das tecnologias DLT no ecossistema do mercado financeiro português, assegurando simultaneamente o cumprimento das regras gerais da UE.

Além disso, a lei nacional reforça o papel de supervisão da ESMA a nível da UE, conferindo poderes à autoridade dos mercados portuguesa, a CMVM, para supervisionar os sistemas baseados em DLT. Este duplo nível de supervisão garante que as especificidades locais são tidas em conta, mantendo a coerência com legislação europeia.

Conclusão

À medida que o Regulamento DLT traça novos territórios, funde a inovação com a regulamentação, mantendo sempre um olhar atento à proteção dos investidores e à estabilidade financeira. Só o tempo revelará se esta iniciativa é um regime-piloto ou o início de um voo de longo curso para um futuro financeiro descentralizado.

Por sua vez, o Decreto-Lei n.º 66/2023 é um marco na harmonização da legislação nacional com o Regulamento DLT. Ao clarificar os pormenores operacionais e as expectativas regulamentares, o decreto prepara o terreno para um panorama financeiro integrado, seguro e eficiente baseado na DLT em Portugal e na UE. O seu alinhamento com os objetivos europeus evidencia um compromisso conjunto para promover a inovação sem comprometer a estabilidade do mercado e a proteção dos investidores.