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O fim das ações ao portador ou talvez não

 | Jornal Económico
Marta Graça Rodrigues (sócia dpto. Mercantil Lisboa)
Foi objeto de publicação no passado dia 3 de maio a Lei n.º 15/2017 que proíbe a emissão de valores mobiliários ao portador, isto é, que proíbe que os titulares dos valores mobiliários não possam ser identificados e conhecidos nem pela sociedade que os emite. Esta lei surge no quadro das medidas ligadas à prevenção da fraude e evasão fiscais e à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo, acolhendo as recomendações nesta matéria elaboradas pelo Grupo de Ação Financeira sobre o Branqueamento de Capitais e transpondo o artigo 10º da Diretiva 2015/849/ EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio. É, como tal, uma iniciativa que todos temos de reconhecer com meritória e relevante.
 
No entanto, e apesar da redação inicial do diploma ter sido apresentada pelo Bloco de Esquerda já no ano passado, e o texto final ter resultado da fusão entre tal proposta e uma posterior apresentada pelo Partido Socialista, a verdade é que o modo de operacionalizar a referida proibição e a conversão dos valores mobiliários de ao portador em nominativos parece ainda estar por pensar. Com efeito, o diploma prevê de uma forma muito simplista que os valores mobiliários ao portador devam ser convertidos em nominativos, isto é, com identificação do titular, no prazo de seis meses. Caso contrário, deixam os referidos valores mobiliários de poder ser transmitidos, sendo suspenso igualmente o direito a participar na distribuição de resultados associados aos mesmos (dividendos e juros).
 
Ao mesmo tempo, prevê a lei que a conversão seja objeto de regulamentação no prazo de 120 dias, podendo apenas sobrar 60 dias às sociedades para proceder à conversão. Por outro lado, as normas do Código dos Valores Mobiliários que regulam a transmissão e exercício dos direitos associados aos valores mobiliários ao portador são desde logo revogadas, ficando por saber como poderão os respetivos titulares transmitir ou exercer os direitos a eles inerentes durante tal período em que os mesmos não padecem de qualquer irregularidade.
 
Fica também por saber o que acontece às distribuições que tenham lugar após decorrido o período de 6 meses sem que os titulares tenham procedido à conversão dos seus valores mobiliários: os titulares perdem o direito a tais distribuições a favor da sociedade ou poderão reclamar os montantes distribuídos relativos às suas ações aquando da sua apresentação para conversão? 
 
As dificuldades práticas inerentes à imposição da conversão (que tal como prevista não é automática) são inúmeras, bastando recordar o período em que as sociedades tiveram de proceder à redenominação do respetivo capital em euros – sendo que nesse caso a redenominação automática foi a solução para uma grande parte das sociedades a quem esta adaptação passou ao lado. No presente caso poderá ser bastante mais difícil de implementar a conversão, pois são inúmeros os casos de acionistas de sociedades anónimas, algumas até com ações admitidas à negociação, que devendo fazê-lo nunca apresentaram os seus títulos para conversão em ações nominativas na sequência de decisão de conversão tomada pela sociedade. Na realidade, é perfeitamente possível uma pessoa nem sequer saber que é acionista de uma sociedade se por exemplo tiver herdado títulos ao portador aos quais não tenha dado importância, sem que tal tenha algo de censurável.  
 
Curioso é que a transmissão de valores não convertidos dentro do prazo esteja proibida - sendo que a transmissão de títulos ao portador se faz mediante a entrega do mesmo - mas que o exercício do direito de voto, pelo menos literalmente, não esteja inibido.  
 
Nos últimos anos foram vários os países que adotaram medidas semelhantes que poderão vir a inspirar a regulamentação do processo de conversão. Na Bélgica, por exemplo, o processo de conversão dos valores mobiliários ao portador tem sido feito gradualmente, tendo-se iniciado em 2005, com a conversão dos valores mobiliários ao portador escriturais a fazer-se automaticamente em 2008 e estando previstas medidas de concretização da conversão dos títulos ao portador até 2025! Mais recentemente, em 2015, foi a vez do Reino Unido e do Luxemburgo proibirem os valores mobiliários ao portador, sendo que em ambas as jurisdições se previu o cancelamento dos mesmos ao fim de um período de 9 e 18 meses, respetivamente, com pagamento aos titulares dos montantes correspondentes ao produto do cancelamento, podendo no Luxemburgo os seus titulares manterem os valores mobiliários ao portador desde que os depositem junto de um depositário regulado.
 
Noutros países, tais como Espanha e Itália, continuam a existir ações ao portador sendo que as mesmas devem ser depositadas junto de um depositário e o seu exercício só pode ser feito com intervenção de uma entidade registadora (terceira entidade regulada, tal como um banco ou um notário), pelo que as questões relativas ao anonimato dos titulares se encontram diluídas, já que existe um controlo na transmissão e exercício dos direitos inerentes aos valores mobiliários em questão.
 
Resta-nos aguardar que a regulamentação da conversão seja feita de forma completa e eficaz, e porque não aproveitando soluções que já se encontram consagradas no nosso ordenamento – como a prevista para a conversão de títulos físicos representativos de ações em ações escriturais (isto é mediante inscrição em conta designadamente bancária) em que os títulos que não foram convertidos apenas legitimam o seu titular para solicitar o registo a seu favor - para que a posição dos titulares dos valores mobiliários ao portador e a situação da sociedade não fiquem indefinidas ad aeternum.
 
* versão desenvolvida do artigo publicado na edição de 19.05.2017 do Jornal Económico