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Mercado Hipotecário - o exemplo de Espanha

Miguel Marques dos Santos

Como há alguns meses tivemos ocasião de referir nesta coluna, nos últimos tempos foram proferidas diversas sentenças judiciais, primeiro pelos Tribunais espanhóis e depois pelos Tribunais portugueses, que vieram gerar desconforto no mercado hipotecário ibérico.

Em ambos os países surgiram decisões judiciais sustentando o entendimento de que a entrega ao Banco da casa hipotecada é suficiente para libertar o devedor da totalidade da sua dívida, não podendo o Banco recorrer ao restante património do devedor (contrariando, desta forma, a interpretação da lei, até aí unânime, no sentido de que a execução da hipoteca ou a dação em cumprimento não impede que o credor venha a recorrer aos demais bens do devedor para o cumprimento do remanescente da dívida).

Ora, como então referimos, independentemente de poder ser discutido o modelo jurídico adoptado pelos legisladores português e espanhol para regular esta matéria, a regulação deste tema deve ser clara e objetiva e, caso se pretenda introduzir alterações ao regime hipotecário, as mesmas devem ser feitas por via legislativa e não por via jurisprudencial, sob pena de se criar um novo foco de incerteza e insegurança no mercado financeiro. Para se compreender o impacto desta questão, refira-se que, quando saíram as primeiras notícias sobre as sentenças judiciais espanholas, a agência Fitch fez saber ao mercado que, caso essas sentenças fossem confirmadas por tribunais superiores, o rating dos bancos espanhóis poderia sofrer um downgrade significativo.

No passado dia 9 de março, o Governo espanhol aprovou o Real Decreto n.º 6/2012 que, por um lado, vem estabelecer um conjunto de medidas, urgentes e de caráter transitório, de proteção dos devedores hipotecários com baixos rendimentos (famílias que, no atual contexto de crise, não conseguem fazer face aos encargos resultantes do seu crédito à habitação) e, por outro lado, vem clarificar que permanece inalterada a regra geral segundo a qual a existência de hipoteca não impede o Banco de vir a recorrer aos demais bens do devedor para o cumprimento da obrigação assumida (quando o valor do imóvel hipotecado se mostre insuficiente).

Para as situações de exceção delimitadas no diploma, o Real Decreto n.º 6/2012 (i) prevê uma limitação, aplicável de imediato, do valor dos juros de mora (que não podem exceder a taxa contratualmente fixada para o financiamento em mais de 2,5%), (ii) prevê um conjunto de regras destinadas a favorecer a renegociação dos empréstimos das famílias (regras essas que se encontram incluídas num “Código de Boas Práticas”, que depende da adesão voluntária dos Bancos), (iii) define um conjunto de medidas de incentivo fiscal à utilização destes mecanismos e (iv) flexibiliza os procedimentos de execução extrajudicial das hipotecas.

O referido “Código de Boas Práticas” prevê um conjunto de medidas de reestruturação das hipotecas das famílias abrangidas pelo Real Decreto n.º 6/2012 que não consigam cumprir as suas obrigações face ao Banco, que assenta em três fases de atuação: (i) uma primeira fase, dirigida a alcançar uma restruturação viável dos financiamentos, através de várias medidas que deverão preceder a execução da dívida hipotecária, nomeadamente a aplicação de uma carência na amortização do capital, a redução dos juros durante 4 anos e a ampliação do prazo total de amortização; (ii) uma segunda fase, caso as medidas atrás referidas não se mostrem suficientes para que o devedor cumpra a sua prestação mensal, em que é sugerido ao Banco que confira ao devedor um perdão parcial da sua dívida e, (iii) finalmente, se nenhuma das anteriores medidas resultar, o devedor poderá entregar ao Banco o seu imóvel (“dação em pagamento”) como medida liberatória definitiva da quantia em dívida. Neste último caso, permite-se que o agregado familiar permaneça no imóvel por um período de 2 anos após a dação em pagamento, mediante o pagamento de uma renda.

As medidas acima referidas apenas serão aplicadas se o imóvel se destinar à residência habitual do devedor hipotecário e se este encontrar numa situação profissional e patrimonial que o impeça de cumprir as suas obrigações hipotecárias e as suas necessidades elementares de subsistência (i.e., se o devedor se encontrar no chamado “limiar de exclusão”).

A verificação da existência de uma situação de “limiar de exclusão” e aplicação desde regime excecional dependem da verificação cumulativa das seguintes circunstâncias: (i) que nenhum dos membros do agregado familiar receba rendimentos do trabalho ou de atividades económicas, (ii) que a prestação hipotecária seja superior a 60% dos rendimentos líquidos do agregado familiar, (iii) que o agregado familiar não tenha outros bens ou direitos patrimoniais suficientes para fazer face à dívida, (iv) que a hipoteca se refira ao único imóvel detido pelo devedor e que tenha sido constituída para a aquisição desse mesmo imóvel, (v) que o crédito não se encontre garantido por outras garantias, reais ou pessoais, ou, no caso de existirem estas últimas, que os garantes se encontrem nas circunstâncias referidas nos pontos (ii) e (iii) antecedentes, e (vi) no caso de codevedores não pertencentes ao mesmo agregado familiar, que os mesmos também se encontrem nas circunstâncias referidas nos pontos (i), (ii) e (iii) antecedentes.

Adicionalmente, a aplicação das medidas excecionais depende ainda do facto de o imóvel hipotecado ter um valor não superior aos limites máximos previstos no Real Decreto n.º 6/2012, os quais variam entre os € 120.000, para os imóveis localizados em municípios que tenham até cem mil habitantes, e os € 200.000, para os imóveis localizados em municípios que tenham mais de um milhão de habitantes.

Em suma, o Real Decreto n.º 6/2012 vem fazer face a um conjunto de situações de carência social motivadas pela atual crise, criando um regime muito excecional e transitório para essas situações, sem, contudo, colocar em causa a segurança e a credibilidade da garantia hipotecária, reafirmando os princípios em que a mesma tem assentado.

Isto é, para além de procurar dar resposta a um problema social, o diploma acima referido tem também a virtualidade de clarificar o carácter excecional destas medidas de proteção, cujo âmbito de aplicação é expressamente reduzido a um conjunto muito restrito de situações, que, por razões de justiça social, careciam de um tratamento próprio.

Tendo em consideração que a situação portuguesa é muito semelhante à situação espanhola (isto é, também em Portugal a crise económica e financeira tem potenciado o crescimento das situações de incumprimento e também em Portugal surgiram decisões judiciais semelhantes às proferidas pelos Tribunais espanhóis), seria importante que o Governo português equacionasse a regulação desta matéria, com o duplo objetivo prosseguido pelo diploma espanhol: por um lado, estipular medidas excecionais e transitórias de proteção das famílias com menores rendimentos e, por outro lado, clarificar o regime da hipoteca, evitando decisões judiciais equívocas que acrescentam turbulência ao mercado financeiro.