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Reforma do Regime do Arrendamento Urbano

Miguel Marques dos Santos

Foram muito recentemente aprovadas pela Assembleia da República as reformas de três regimes jurídicos essenciais para o setor imobiliário: o regime jurídico da reabilitação urbana, o regime jurídico do arrendamento urbano e o regime jurídico das obras em prédios arrendados.

Como já aqui tivemos oportunidade de referir, é, desde há muito, consensual que os regimes jurídicos agora reformados continham diversos entraves para o desenvolvimento dos respetivos mercados, sendo também evidente para todos que as reformas em causa constituíam uma condição sine qua non para que esse desenvolvimento pudesse ter lugar.

Apesar da grande expetativa com que estes novos diplomas são aguardados, a enorme complexidade dos respetivos textos legais tem levantado muitas dúvidas, questões e incertezas que, na medida do possível, importa esclarecer e clarificar. É precisamente isso que tentaremos fazer nos próximos parágrafos, concentrando a nossa análise na reforma do regime do arrendamento urbano, uma vez que as respetivas alterações são também o primeiro passo para o sucesso do mercado da reabilitação urbana.

Ponto de Partida
O quadro legal do arrendamento urbano português do último século criou graves distorções nas regras de mercado. A imposição da prorrogação legal forçada dos contratos e o congelamento das rendas são claros exemplos dessas distorções.

Por outro lado, foi-se mantendo um regime de despejo ineficiente e eficaz, que permitia que os arrendatários incumpridores se mantivessem quase indefinidamente em locais arrendados aos quais sabiam não ter direito. Este quadro legal gerou uma enorme desconfiança nos proprietários e nos investidores que, se ainda não tinham arrendado os seus imóveis, não os colocavam no mercado e, se já os tinham arrendado, deixavam de cuidar da sua manutenção por falta de rendimento.

A consequência de tudo isto foi o desaparecimento, na prática, do mercado de arrendamento (em especial, o habitacional) e a degradação gradual dos edifícios, situação que pouco ou nada se inverteu após a reforma do regime do arrendamento urbano de 2006.

Para pôr termo a este ciclo vicioso e dinamizar o mercado de arrendamento urbano, o Governo, no âmbito do Memorando assinado com a Troika, submeteu à Assembleia da República a Proposta de Lei de alteração do Novo Regime do Arrendamento Urbano (“NRAU”), agora aprovada, e que terá ainda de ser promulgada pelo Presidente da República e publicada em Diário da República, antes de entrar em vigor (o que ocorrerá 90 dias após a data da sua publicação).

Para além de algumas alterações no sentido de liberalizar as regras dos novos contratos de arrendamento (a celebrar após a sua entrada em vigor), o diploma agora aprovado introduz alterações significativas, quer ao nível do regime transitório para os contratos antigos (relativo à transição desses contratos para o novo regime e à atualização das respetivas rendas), quer ao nível do despejo dos arrendatários incumpridores. Pela importância que estes dois últimos aspetos têm no sucesso da reforma, vamos centrar este texto na sua análise, deixando a análise das alterações no sentido da liberalização para uma próxima oportunidade.

Alterações ao regime dos contratos antigos
A nova lei vem estabelecer um regime de atualização de rendas, combinado com a transição dos contratos antigos para o novo regime, que se baseia num mecanismo de negociação particular, em que a iniciativa cabe ao senhorio e no qual senhorio e arrendatário deverão acordar o novo valor da renda e o novo tipo e duração do contrato.

Caso, no final deste processo negocial, não haja acordo quanto ao valor da nova renda, o senhorio poderá optar entre (i) denunciar o contrato e pagar uma indemnização ao arrendatário equivalente a 5 anos da renda resultante do valor médio das propostas formuladas pelas partes no processo negocial ou (ii) atualizar a renda para um valor anual de 1/15 do valor patrimonial tributário do imóvel (i.e., o valor fiscal do imóvel após a avaliação do mesmo nos termos do Código do IMI).

Para incentivar ambas as partes a negociarem de forma razoável e a obterem um consenso, a nova lei prevê ainda um conjunto de normas supletivas que se aplicarão em caso de falta de resposta de alguma das partes ou no caso de falta de acordo quanto ao novo valor da renda ou ao novo tipo e prazo do contrato.

Com vista a reduzir o impacto destas novas regras em casos merecedores de proteção económica ou social, a nova lei prevê regimes especiais para quem invoque uma ou várias das seguintes situações: (i) baixos rendimentos, (ii) idade superior a 65 anos ou (iii) deficiência com grau de incapacidade superior a 60%, no caso dos arrendamentos habitacionais, e existência no locado de um pequeno estabelecimento comercial (“microentidade”) ou de uma associação sem fins lucrativos de interesse público, no caso dos arrendamentos não habitacionais.

Por fim, a nova lei vem ainda introduzir alterações no regime de transmissão por morte do direito ao arrendamento, com vista a eliminar a possibilidade de transmissões sucessivas do direito ao arrendamento em certos casos, bem como a possibilidade de transmissão no caso de o titular desse direito ter casa própria ou arrendada no mesmo concelho, prevendo ainda que, após a transmissão do contrato, este transitará para o NRAU.

Alteração ao regime do despejo
A lei agora aprovada vem criar o Procedimento Especial de Despejo (“PED”), que consiste num mecanismo tendencialmente extrajudicial para a desocupação do locado em caso de cessação do contrato de arrendamento.

O PED tramitará através do agora criado Balcão Nacional do Arrendamento (“BNA”), numa lógica de funcionamento e tramitação semelhante à das injunções para pagamento de dívidas.

O PED apenas se transformará em processo judicial no caso de oposição do arrendatário, que, para esse efeito, terá que proceder ao pagamento de uma caução no valor das rendas em atraso, tendo ainda a obrigação de pagar as rendas que se vencerem na pendência da ação. Este processo judicial correrá os seus termos de acordo com um procedimento especial, com uma tramitação mais abreviada.

Por fim, são ainda previstas regras quanto à desocupação do locado (e a eventual necessidade de intervenção judicial para esse fim), bem como as situações em que o arrendatário poderá requerer que a desocupação seja suspensa ou diferida.

Apreciação global
Numa análise global, pode considerar-se a Lei agora aprovada como bastante positiva, especialmente no que se refere ao regime de atualização de rendas e de transição dos contratos antigos para o NRAU (embora, em alguns aspetos, este regime se possa vir a revelar um pouco complexo na sua aplicação prática).

É verdade que regime agora aprovado poderia ter sido um pouco mais restritivo na delimitação dos regimes especiais de proteção, por forma a acelerar o processo de extinção dos contratos antigos. No entanto, compreende-se que, face às expetativas que o anterior regime criava nos arrendatários e à situação de grave crise que o país atravessa, o Governo e a maioria parlamentar tenham optado por um caminho de prudência, com vista a não criar, em termos práticos, um problema maior do que aquele que a reforma pretende resolver.

São também de destacar as alterações, muito positivas, introduzidas no regime jurídico das obras em prédios arrendados (facilitando a denúncia dos contratos, nos casos de obras profundas, por mera comunicação e já não através de ação judicial), a alteração do regime fiscal (prevendo, a curto prazo, uma taxa especial de tributação em sede de IRS de 25% aplicável às rendas de prédios urbanos) e a criação de um seguro de renda (cobrindo o risco de incumprimento pelos arrendatários), aspetos que certamente contribuirão para aumentar a confiança dos proprietários e investidores no mercado do arrendamento.

Existe, no entanto um aspeto que poderá comprometer, nalguma medida, o sucesso da reforma: o novo regime do despejo. O facto de o despejo ter de passar, em muitas situações, pela via judicial, implicará necessariamente uma demora e um custo superiores ao que seria desejável, com todas as consequências negativas daí decorrentes. É certo que uma solução extrajudicial mais agressiva poderia suscitar problemas de constitucionalidade, mas esta teria sido uma boa oportunidade de pôr a constituição ao serviço dos portugueses, em lugar de manter os portugueses ao serviço da constituição. Uma boa implementação práctica do processo especial de despejo, com alocação de meios humanos e técnicos que garantam um funcionamento eficiente, poderão atenuar o caráter negativo da solução escolhida, mas dificilmente a transformarão numa boa solução.

Em suma, a Lei é muito positiva, tem claramente um cunho de mudança (estabelecendo condições para o fim progressivo dos contratos de antigos), mas tem um aspeto que à primeira vista não parece ter sido bem resolvido, o despejo, cuja capacidade de contaminar os aspetos positivos da Lei dependerá, em larga medida, da forma como for feita a sua implementação no terreno. Vamos ver…